“A infância não pede pressa. Pede olhos que reparem, mãos que acompanhem, silêncios que escutem.”
1. Abrir a porta da escola: o início de um mundo
Quando a porta da escola se abre de manhã, não entra apenas a criança — entra também seu mundo. Entram os cabelos ainda desalinhados pelo travesseiro, o cheiro do café da manhã, a saudade da mãe, os pés ligeiros que correram até ali. Entram perguntas, medos, vontades e afetos.
Entrar na escola da infância é como atravessar um limiar entre o que é íntimo e o que é coletivo. É ali, entre o portão e o pátio, que começa a poesia do cotidiano escolar. Não a poesia feita de rimas e versos escritos em papel, mas aquela que mora nos gestos, nos ritmos e nas relações.
A escola da infância é, sobretudo, um território de convivência. E a convivência, quando vivida com presença e sensibilidade, torna-se espaço de aprendizagem potente — onde o conhecimento se constrói de mãos dadas com o cuidado, o olhar atento, a escuta aberta e o tempo partilhado.
2. A linguagem das crianças: o corpo, o gesto, o silêncio
As crianças não chegam à escola apenas com palavras — muitas vezes, chegam com olhares, com silêncios, com gestos que dizem mais do que qualquer fala. Há quem entre pulando, e há quem entre devagarzinho, como se ainda experimentasse o chão. Há quem sorria logo e quem precise de um tempo para confiar.
O cotidiano escolar, para quem educa na infância, é um campo de tradução delicada: é preciso aprender a escutar com o corpo inteiro. Uma escuta que vá além do som e perceba o tom, o jeito, a pausa.
Nessa escuta poética, tudo se torna linguagem:
- O modo como a criança arruma os brinquedos;
- A escolha de sentar perto ou longe dos colegas;
- O modo como se aproxima de um livro;
- O choro que vem sem motivo aparente;
- O riso que brota inesperado.
A convivência se tece a partir dessa atenção sensível. Cada criança revela, em sua presença, pistas do que sente, do que precisa, do que deseja aprender. E o educador que se dispõe a viver essa escuta cotidiana se transforma. Aprende a ler a infância não com olhos de controle, mas com olhos de poesia.
3. O tempo que cabe na infância
O tempo da infância não cabe nos relógios. É um tempo próprio, feito de demoramentos, de repetições, de mergulhos demorados em uma única brincadeira. É o tempo em que as folhas têm histórias, os insetos são companheiros, e as poças viram oceanos.
O cotidiano escolar, muitas vezes pressionado por rotinas e horários, precisa aprender a dialogar com esse tempo devagar. Há uma pedagogia do tempo na infância — uma pedagogia que se recusa a apressar a experiência, e que aposta na profundidade da vivência.
Quando a escola respeita o tempo da criança, ela lhe dá o direito de ser inteira. E ser inteira significa poder experimentar, errar, repetir, imaginar, desistir e tentar de novo. Significa poder conviver com os outros sem a urgência de ser igual. Significa poder aprender a partir do encontro, e não apenas do conteúdo.
4. A convivência como espaço de criação
As crianças aprendem muito mais quando estão juntas. No encontro com o outro, descobrem o diferente, o conflito, a negociação, o cuidado. Aprendem a se colocar, a escutar, a ceder, a convidar. E tudo isso acontece de forma fluida, no chão da convivência.
Não se ensina a conviver por meio de cartazes prontos ou regras externas. A convivência se aprende vivendo. É no meio do jogo que surge o desentendimento. É no uso compartilhado do brinquedo que se exercita a espera. É na construção coletiva que se pratica a escuta. E é na relação entre pares que se desenvolve a ética do cuidado e da alteridade.
A escola que compreende a convivência como experiência poética e formadora cria tempos e espaços para que ela aconteça de verdade. Não apenas no recreio, mas em todos os momentos do dia. Nos combinados, nas rodas de conversa, nas brincadeiras, nas propostas artísticas, nas pequenas situações imprevistas que o cotidiano traz.
A poética da convivência nasce quando o educador enxerga o outro como presença. Quando vê o gesto, o corpo, o tom da fala. Quando entende que, antes de ensinar qualquer conteúdo, é preciso cultivar vínculos. É preciso estar com, e não apenas dirigir.
5. Os pequenos rituais que sustentam o comum
O cotidiano é feito de rituais. E, na escola da infância, eles são como fios que costuram o dia. A chegada, a roda de conversa, o momento de lavar as mãos, a despedida. São gestos que se repetem, mas que, quando vividos com presença, carregam um sentido profundo.
Esses rituais não são burocráticos — são poéticos. Dão forma ao tempo, oferecem segurança, constroem pertencimento. E, ao mesmo tempo, abrem espaço para o improviso, para o inesperado, para a escuta do momento.
Quando os rituais são vividos com verdade, eles educam para o cuidado: cuidar do outro, cuidar do espaço, cuidar de si. E é nesse cuidado que a convivência se torna aprendizagem.
6. Aprender é brincar de descobrir
Na escola da infância, aprender não é repetir. É descobrir. É tocar, experimentar, mover, imaginar. É fazer perguntas com o corpo. É encontrar o mundo pela primeira vez, todos os dias.
A aprendizagem acontece nos detalhes:
- Quando a criança tenta equilibrar um objeto e se dá conta da gravidade.
- Quando mistura tintas e percebe o surgimento de uma nova cor.
- Quando compara tamanhos de folhas e constrói relações de grandeza.
- Quando narra uma história e organiza sua memória.
Tudo isso nasce do cotidiano. E é no cotidiano que a poética da aprendizagem floresce — porque aprender, na infância, é sempre um ato criativo. E a criatividade só existe quando há liberdade, escuta e espaço para o brincar.
7. O educador como quem cultiva poesia
Ser educador da infância é estar disponível para o encantamento. É ter olhos treinados para ver o que escapa. É, como diz Madalena Freire, formar-se no próprio fazer. E formar-se é também cultivar poesia.
O educador que habita o cotidiano com presença aprende a ver o gesto de cuidar como ato pedagógico. Aprende a reconhecer que ensinar pode ser oferecer colo, mediar um conflito, ouvir uma história contada três vezes, e não se cansar.
A poética da docência não está nos grandes feitos. Está na constância dos encontros. Está em saber o nome de cada criança. Em perceber que uma delas está diferente hoje. Em celebrar o que parecia pequeno, mas que, para a criança, foi uma grande conquista.
Esse educador se forma quando se permite sentir. Quando não endurece. Quando escreve sua prática, pensa sobre ela, compartilha com os pares. Quando entende que a escola não é lugar de moldar crianças, mas de abrir caminhos para que elas possam se tornar.
8. O ambiente como terceiro educador da convivência
O espaço também educa. As paredes, as janelas, a organização dos materiais, a disposição das mesas — tudo comunica. Tudo pode convidar ou afastar. Tudo pode silenciar ou acolher.
Quando a escola se organiza como lugar de escuta, os espaços refletem isso. São espaços onde as crianças se veem, se reconhecem, se movem com autonomia. Onde há lugar para o encontro, para o brincar livre, para a invenção coletiva.
A poética da convivência também se escreve no chão da escola. No tapete que acolhe a roda, nas plantas que as crianças regam, nas fotografias que documentam o vivido. O ambiente é, como dizem as pedagogias italianas, um terceiro educador. E, quando pensado com afeto e intenção, torna-se um lugar de vínculos e aprendizagens.
9. Conflitos são encontros que precisam de tradução
Conflitos fazem parte da convivência. E, na infância, são frequentes, intensos, legítimos. A criança ainda está aprendendo a nomear o que sente, a regular seus impulsos, a reconhecer o outro como diferente. Por isso, muitas vezes, briga, chora, empurra, grita.
O papel do educador, nesses momentos, não é punir nem ignorar. É trazer palavras para o que foi vivido. É mediar com paciência. É ajudar a criança a se escutar e a escutar o outro.
Resolver conflitos é oportunidade de aprendizagem relacional. E é nessa mediação cuidadosa que o educador ensina o respeito, a escuta, o reparo, o recomeço. Quando há escuta, há possibilidade de reconstrução. E isso também é poesia: transformar tensão em possibilidade de afeto.
10. Conclusão: a infância como casa da convivência poética
Viver o cotidiano da escola da infância como lugar de poesia e convivência é um ato de resistência. É escolher ver sentido onde o mundo quer automatizar. É desacelerar onde tudo grita por pressa. É sustentar vínculos onde há fragmentação.
A infância nos convida a essa outra forma de viver o tempo. Uma forma mais demorada, mais sensível, mais escutada. E a escola que aceita esse convite torna-se fértil. Porque convivência não é só estar junto — é construir o estar junto. É fazer do coletivo um espaço de singularidades.
Na poética do cotidiano, a aprendizagem não é separada da vida. Ela brota dela, com afeto, com espanto, com desejo. E o educador que se forma nesse chão compreende que educar é, antes de tudo, amar o comum. Amar o dia que começa igual, mas nunca é o mesmo. Amar as perguntas que se repetem. Amar os gestos que sustentam.
A escola da infância é poesia viva. Que pulsa em cada corpo, em cada laço, em cada descoberta. Basta estar por inteiro. E confiar.
O menino que carregava água na peneira
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
[…]
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
[…]
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!