A escrita não é apenas o que se escreve no papel. É o modo como nos escrevemos no mundo.
1. A Escrita Como Corpo Que Pensa
No movimento silencioso de quem anota o vivido, no caderno que guarda rastros da travessia, habita uma prática profundamente pedagógica: o Diário de Bordo. Mais que um registro, ele é espaço de escuta, elaboração e criação. É o lugar onde o educador se encontra consigo mesmo, com suas experiências, e com a possibilidade de olhar o vivido com outros olhos. No pensamento de Madalena Freire, essa prática é muito mais que instrumento metodológico — é corpo que pensa, é gesto de formação, é ato democrático.
O Diário de Bordo é onde a escola se ressignifica: o que parecia pequeno ganha contorno; o que doía encontra nome; o que era silêncio se faz palavra. É nesse espaço que o educador se torna sujeito de sua própria prática, reconhecendo-se como alguém que sente, pensa, erra, acerta e, sobretudo, se transforma. Escrever é continuar educando. É estender o tempo do encontro. É tornar sensível aquilo que, de tão cotidiano, poderia passar despercebido.
A escrita, para Madalena, é presença. Ela pulsa. É feita de escuta, de memória, de desejo. E, no diário, ela floresce como campo de criação e reinvenção da docência.
2. Madalena Freire: A Formação Como Escrita de Si
Madalena Freire fala da prática com a delicadeza de quem a vive. Sua proposta de formação está enraizada no chão da escola e na pele do professor. Não se trata de oferecer respostas prontas ou de buscar técnicas eficazes. Trata-se de trilhar caminhos de escuta, de corpo inteiro, de atenção aos detalhes, de acreditar que é possível transformar a escola transformando a si mesmo.
Nessa trilha, o registro não é apenas um anexo da prática — ele é parte dela. A escrita é, ao mesmo tempo, elaboração e revelação. Como Madalena afirma, escrevemos com o corpo todo, com os sentidos alertas, com os olhos que escutam e os ouvidos que enxergam.
O Diário de Bordo, então, não é um caderno comum. É um território de pensamento. Um abrigo de memórias vivas. Um espelho e uma travessia. É onde o educador acolhe o que sente, nomeia o que pensa, reconstrói o vivido e projeta o que virá.
É nesse registro sensível que se forma a estética da docência: uma pedagogia que reconhece a beleza do processo, a riqueza dos encontros e a potência das entrelinhas.
3. Estudar a própria prática: um gesto político, sensível e criador
Estudar a própria prática, para Madalena Freire, é o eixo vital da formação docente. É um convite a sair do lugar de repetição e entrar no território da reinvenção. Quando um educador se dispõe a observar, refletir e escrever sobre sua própria caminhada pedagógica, ele deixa de ser apenas executor de programas e passa a ser pesquisador de si mesmo, autor de sua história, artista da sua docência.
Esse estudo não se limita a uma análise racional e objetiva dos procedimentos. Ao contrário, é um estudo sensível, atravessado por afetos, memórias, intuições, conflitos e encantamentos. Estudar a própria prática é permitir-se ser tocado por ela — é parar para escutar o que se vive, com profundidade e delicadeza. É mergulhar nos detalhes, nos pequenos gestos, nas escolhas diárias que muitas vezes passam despercebidas.
Madalena ensina que estudar a prática não é buscar acertos, mas revelar sentidos. É mais do que corrigir o que não funcionou: é compreender por que algo aconteceu, como nos afetou, o que nos disse sobre nós mesmos e sobre os outros. É também reconhecer nossas marcas, nossa linguagem, nossos modos de estar com as crianças, de escutar seus desejos, de construir conhecimento com elas.
Ao estudar sua prática, o educador desenvolve uma postura investigativa diante de si e do mundo. Começa a perguntar-se com curiosidade e abertura:
- Por que escolhi tal abordagem?
- Que silêncios existiram hoje em minha sala?
- O que o comportamento daquela criança me revelou?
- De que forma o coletivo respondeu ao espaço que organizei?
- O que minha prática tem a ver com o mundo que desejo construir?
Essa atitude formativa tem profunda ligação com a democracia: um educador que estuda sua prática se responsabiliza por ela, se implica com ela e, principalmente, a compreende como parte de um tecido coletivo.
Estudar a prática é também um exercício de sensibilidade estética: ver-se com outros olhos, como quem olha uma obra de arte ainda em processo. Há beleza, há conflito, há inacabamento. E é justamente aí que reside a potência.
4. A Dimensão Estética do Registrar
O ato de escrever é, em si, uma experiência estética. O Diário de Bordo é poesia do cotidiano escolar. Nele, cabem as falas das crianças, os olhares fugidios, os gestos de cuidado, as pausas necessárias. É a arte de reconstituir a experiência com palavras que tocam, que mobilizam, que ensinam.
Para Madalena, essa escrita é viva. Não obedece a modelos engessados. Não se submete à linguagem técnica e fria. O educador escreve como sente, como pode, como precisa. A forma surge do conteúdo, e o conteúdo surge da vivência. O diário é um campo fértil para a singularidade — de cada professor, de cada turma, de cada dia.
A estética da sensibilidade se manifesta na escolha das palavras, no ritmo da escrita, na escuta do que não foi dito. É uma escrita que não quer controlar, mas libertar. Que não aponta o erro, mas revela a descoberta. Que não burocratiza, mas humaniza.
5. O Diário Como Espaço Político
Ao escrever sua prática, o educador se posiciona no mundo. O Diário de Bordo é também um ato político: rompe com o silêncio imposto pelas formas padronizadas de fazer escola, e assume a autoria de um percurso que é único. Madalena nos lembra de que o educador é sujeito de saber, e sua experiência é legítima fonte de conhecimento.
Na escrita do diário, o professor registra o que vive, mas também o que pensa sobre o que vive. Questiona, problematiza, propõe. É a partir daí que a prática se torna pensamento, e o pensamento se torna prática transformadora.
Essa escrita também descoloniza a formação. Ao contrário de modelos de avaliação distantes, que reduzem o professor a números ou indicadores, o Diário de Bordo oferece uma perspectiva narrativa, poética, sensível — que considera o contexto, os afetos, os conflitos, as singularidades.
Escrever é resistir. É garantir que a memória da experiência escolar não seja apagada. É afirmar que educar é também narrar.
6. A Escuta como Matéria da Escrita
O que alimenta o Diário de Bordo é a escuta. Escuta da criança, da equipe, da comunidade, mas também escuta de si. Madalena insiste que só há formação quando há escuta verdadeira. E escutar, aqui, é deixar-se afetar.
Essa escuta se dá nos intervalos, nas entrelinhas, nos gestos mínimos. O educador atento capta nuances que muitas vezes escapam à objetividade do discurso pedagógico. Ele percebe a linguagem do corpo, as metáforas do brincar, o silêncio como expressão. E é isso que escreve. Com o corpo tocado.
No Diário, não se escreve o que se planejou, mas o que se viveu. E o vivido é sempre múltiplo, contraditório, imprevisível. A escuta permite captar essas camadas e transformá-las em matéria de pensamento. Ao escutar, o educador já está escrevendo — por dentro. Ao escrever, prolonga e aprofunda essa escuta.
7. Um Caderno Para Amar a Prática
O Diário de Bordo é também um gesto de amor à docência. Escrever sobre a prática é cuidar dela. É reconhecê-la como valiosa. É dar-lhe lugar. É dizer: o que vivemos importa.
Esse gesto amoroso transforma o olhar. O que antes parecia pequeno — uma conversa no canto da sala, um choro contido, um gesto de solidariedade — ganha potência simbólica. A escrita ilumina aquilo que o cotidiano apaga. A prática se engrandece quando é narrada com verdade.
Ao reler seus cadernos, o educador se surpreende. Descobre que cresceu. Que mudou. Que há um fio que costura sua trajetória, mesmo quando ela parecia dispersa. O caderno guarda a história de um professor em movimento.
Escrever é, então, um modo de amar o que se vive. É um cuidado com o tempo. Um carinho com a memória. Um jeito de fazer da docência uma obra viva.
8. O Diário de Bordo na Formação Coletiva
Na perspectiva de Madalena Freire, a escrita da prática não é solitária. É escrita que se oferece ao coletivo. Que se partilha. Que se lê em grupo. Que se comenta, se reescreve, se debate.
A formação docente ganha potência quando há espaço para essa partilha sensível. Não se trata de julgar o que está escrito, mas de ampliar o olhar. Ao ouvir o diário do outro, o educador se reconhece, se inspira, se inquieta. E, ao ser lido, se sente visto.
Nas rodas de formação, os cadernos circulam. São territórios de presença. São convites à escuta e ao diálogo. São também instrumentos de reinvenção da prática — porque ler o próprio diário com o olhar do outro é recomeçar a experiência.
Essa partilha também democratiza a formação. Todos têm voz. Todos escrevem. Todos podem refletir sobre o vivido. A hierarquia se dissolve quando o que se compartilha é o afeto, o gesto, a dúvida.
9. O Diário de Bordo como Obra Inacabada
Por fim, o Diário de Bordo é sempre uma obra inacabada. Nunca se esgota. Nunca se fecha. Ele acompanha o professor como companheiro de travessia. Testemunha os dias bons e os difíceis. Recolhe lágrimas e sorrisos. Anota projetos e lutos. É feito de vida.
Madalena Freire nos convida a aceitarmos o inacabamento como potência. O caderno não exige perfeição. Ele acolhe. Ele suporta o incerteza. Ele abraça a dúvida. Porque é na dúvida que mora a abertura para o novo.
E assim como o diário, o professor também está sempre em processo. Sempre se escrevendo. Sempre se refazendo. Sempre aprendendo a ver de novo.