“A Criança segundo Maria Montessori: presença, autonomia e construção sensível do ser”

Maria Montessori (1870–1952) foi médica, educadora e cientista italiana, pioneira em um método de ensino que revolucionou a compreensão da infância. Nascida em Chiaravalle, na Itália, destacou-se desde jovem pela determinação em seguir a carreira médica — algo incomum para mulheres de sua época —, formando-se em Medicina em 1896 pela Universidade de Roma.

Seu contato inicial com crianças ocorreu no trabalho com pequenos portadores de deficiências intelectuais, onde desenvolveu métodos baseados na observação, na autonomia e no uso de materiais sensoriais. Em 1907, abriu a primeira Casa dei Bambini (“Casa das Crianças”), aplicando seu método com crianças de comunidades operárias.

Montessori via a criança como um ser ativo, capaz de construir a si mesmo quando inserido em um ambiente preparado, rico em estímulos e respeito. Seu trabalho se espalhou pelo mundo, inspirando escolas e educadores em diferentes culturas.

Ao longo da vida, escreveu obras fundamentais, como A Criança (1936), A Descoberta da Criança (1948) e Educação para um Mundo Novo (1946). Indicada três vezes ao Prêmio Nobel da Paz, defendeu a educação como chave para a construção de uma sociedade mais justa e pacífica.

Maria Montessori faleceu em 6 de maio de 1952, na Holanda, deixando um legado que continua vivo em milhares de escolas e na valorização da infância como presença transformadora.

Na época em que Maria Montessori viveu — final do século XIX e primeira metade do século XX —, a presença feminina nos espaços acadêmicos, científicos e de decisão era rara e frequentemente contestada. As mulheres eram socialmente direcionadas quase exclusivamente ao lar, à maternidade e a funções de cuidado consideradas “naturais”, mas não reconhecidas como intelectualmente relevantes.

Por isso, a trajetória de Montessori não foi apenas profissional, mas profundamente política. Ao tornar-se uma das primeiras médicas da Itália em 1896, ela rompeu barreiras que pareciam intransponíveis: enfrentou preconceitos explícitos dentro da universidade, precisou assistir aulas separada dos homens e chegou a ser impedida de participar de algumas práticas médicas por ser mulher.

Sua figura feminina no campo da ciência e da educação tinha um duplo impacto:

  • Representatividade pioneira – Ao ocupar espaços tradicionalmente masculinos, abriu caminho para que outras mulheres pudessem seguir carreiras científicas e intelectuais.
  • Resignificação da autoridade feminina – Montessori não rejeitou o vínculo histórico entre mulheres e cuidado, mas o ampliou para uma esfera pública, transformando-o em pedagogia, ciência e ação social.

Ela mostrou que a sensibilidade, a observação atenta e o cuidado — frequentemente associados ao “feminino” — podiam ser aliados de uma prática profundamente inovadora e rigorosa. Ao mesmo tempo, provou que o pensamento científico e a liderança não eram atributos exclusivamente masculinos.

Maria Montessori encarna a mulher que, ao mesmo tempo em que rompe padrões, também valoriza qualidades humanas como escuta, acolhimento e intuição — não como fraquezas, mas como forças transformadoras no campo da educação e da construção social.

O livro “A Criança”, de Maria Montessori, é uma obra essencial para entender sua pedagogia centrada no respeito à autonomia, com escuta e observação profunda da criança como sujeito ativo. O tema tem relevância contemporânea, lembrando que, hoje, mais do que nunca, precisamos resgatar uma educação que valorize a presença, a sensorialidade e o ritmo singular de cada criança — tudo no escopo da estética da presença.

Montessori e a criança como sujeito ativo

Montessori rompe com a visão tradicional: a criança não é um vaso vazio, mas sim uma potência criativa que constrói o próprio desenvolvimento. A criança “faz os adultos”, força autônoma que molda o seu futuro e esse conceito ativa uma reconfiguração estética da infância: uma presença plena, que exige atenção e reverência por parte do adulto.

Ambiente preparado e liberdade com limites

Montessori propõe um ambiente estruturado com materiais estimulantes, que incentivam a exploração autônoma e o desenvolvimento sensorial. A estética da presença ecoa nessa concepção de ambiente: cada objeto devidamente disposto cria uma atmosfera que acolhe, convida e inspira. O adulto é guia e observador, não instrutor impositor; essa postura sustenta uma relação estética baseada no respeito e na escuta profunda.

Planos de desenvolvimento e sensibilidade aos ritmos

Montessori divide o desenvolvimento em fases, cada qual com características próprias e potenciais distintos. Essa sensibilidade rítmica valoriza a presença no aqui e agora — reconhece a criança no seu tempo e clima interior. Essa percepção temporal e sensorial conecta com uma estética da presença que vê a criança integralmente: corpo, intuição, pensares e afetos.

Maria Montessori dividiu o desenvolvimento infantil em quatro grandes planos de desenvolvimento, cada um com características próprias, necessidades específicas e modos distintos de aprender e se relacionar com o mundo.

Essa visão está presente em diversas obras dela, especialmente em A Mente Absorvente da Criança e em conferências sobre educação cósmica. Ela via esses planos como fases completas, que não se limitam apenas à infância, mas acompanham a formação humana até a vida adulta.

Os Quatro Planos de Desenvolvimento segundo Montessori

1º Plano – Infância (0 a 6 anos)

  • Características: mente absorvente, grande capacidade de aprender inconscientemente, formação da personalidade e da base do ser.
  • Divisão interna:
    • 0 a 3 anos – período inconsciente, no qual a criança absorve informações do ambiente sem intenção deliberada.
    • 3 a 6 anos – período consciente, no qual a criança busca intencionalmente experiências e conhecimento.
  • Necessidades principais: ambiente preparado, liberdade de movimento, materiais sensoriais, cuidado com o desenvolvimento físico e emocional.
  • Períodos sensíveis: linguagem, movimento, ordem, refinamento dos sentidos, comportamento social.

2º Plano – Infância média (6 a 12 anos)

  • Características: curiosidade intelectual, pensamento abstrato emergente, interesse por moral, justiça e regras.
  • Necessidades principais: projetos colaborativos, histórias que apresentem o conhecimento humano (Educação Cósmica), oportunidade de explorar o mundo e desenvolver responsabilidade.
  • Períodos sensíveis: imaginação, moralidade, organização mental, vida social.

3º Plano – Adolescência (12 a 18 anos)

  • Características: mudanças físicas e emocionais intensas, busca por identidade e pertencimento social, pensamento crítico em formação.
  • Necessidades principais: atividades práticas, integração com a comunidade, experiências de trabalho real, apoio emocional.
  • Enfoque Montessori: criação de “escolas fazenda” ou ambientes em que adolescentes possam trabalhar, colaborar e desenvolver autonomia.

4º Plano – Vida adulta jovem (18 a 24 anos)

  • Características: consolidação da identidade, ingresso na vida profissional e cidadã, amadurecimento moral e ético.
  • Necessidades principais: aprofundamento do autoconhecimento, especialização profissional, contribuição consciente para a sociedade.

Montessori via esses planos como ciclos completos, cada um com dois subperíodos (primeira e segunda metade), marcados por transições significativas. Ela enfatizava que o sucesso em um plano depende de como as necessidades do plano anterior foram atendidas.

Implicações contemporâneas e sensibilidade estética

A ideia central da obra A Criança, de Maria Montessori, nos convida a reconectar com a infância como presença estética, potência e participação sensível no mundo. Nós, educadores e responsáveis podemos perceber cada criança como um universo em construção — e essa percepção exige reverência estética, ética e pedagógica.

Quando Maria Montessori diz algo na linha de “a criança faz os adultos”, ela está apontando para uma inversão de olhar: não são apenas os adultos que moldam as crianças — as crianças também moldam os adultos. No pensamento montessoriano, isso significa que:

  • O adulto se transforma ao observar e conviver com a criança. A criança revela ritmos mais lentos, modos mais atentos, curiosidades que o adulto havia perdido.
  • A criança é formadora da humanidade futura. Ela traz potencialidades, valores e formas de ser que influenciam diretamente o mundo — e, portanto, a forma como os adultos agem e pensam.
  • O papel do educador é também de aprendiz. Ao preparar o ambiente, ao observar com paciência, o adulto é “educado” pela própria experiência de estar presente diante da criança.
  • É um lembrete ético e estético: a infância não é apenas uma fase de “formação” em que se recebe — é também um tempo de dar, de ensinar ao adulto outra maneira de habitar o mundo.

Princípios Montessorianos

  1. Educação como ajuda à vida
    A educação deve apoiar o desenvolvimento natural da criança, respeitando seu ritmo e necessidades, ajudando-a a construir-se como pessoa completa.
  2. A criança como protagonista
    A criança não é um recipiente a ser preenchido, mas um ser ativo, capaz de aprender por meio da exploração, da curiosidade e da interação com o ambiente.
  3. Ambiente preparado
    O espaço deve ser organizado, acessível e esteticamente agradável, pensado para favorecer a autonomia, a segurança e a liberdade de movimento da criança.
  4. Liberdade com responsabilidade
    A criança tem liberdade para escolher atividades e se movimentar, mas dentro de limites claros e respeitosos, que garantem a convivência e o cuidado com o espaço.
  5. Aprendizagem pela experiência
    O conhecimento se constrói pela ação e pela experimentação sensorial, usando materiais concretos que levam à compreensão de conceitos abstratos.
  6. Autoeducação (autodisciplina)
    A criança, ao explorar livremente e se engajar em atividades significativas, desenvolve concentração, autonomia e autorregulação — sem depender de punições ou recompensas externas.
  7. Observação do educador
    O educador observa atentamente para identificar necessidades, interesses e momentos de prontidão, intervindo de forma precisa e respeitosa.
  8. Períodos sensíveis
    Existem janelas de tempo específicas em que a criança demonstra interesse intenso e capacidade de aprender determinados conhecimentos ou habilidades com mais facilidade.
  9. Respeito pelo ritmo individual
    Cada criança tem seu próprio tempo para aprender e desenvolver habilidades; comparações e pressões externas são evitadas.
  10. Educação para a paz e para a vida social
    Montessori entendia que a educação deveria preparar para uma convivência pacífica, colaborativa e respeitosa, formando cidadãos conscientes e solidários.

Estes princípios montessorianos numa sociedade digitalizada, apressada, que raramente reconhece os ritmos da infância é um apelo à ética do cuidado. A estética da presença significa desacelerar, oferecer espaços sensoriais, escuta ativa, fomentar o vínculo adulto-criança de forma não invasiva, mas atenta e minimamente espaçada. Algumas situações práticas seriam a criação de cantos sensoriais, uso de materiais naturais e artesanais, tempo para observação sem parâmetros de resultados, valorização do silêncio, da música, da arte.

Algumas Citações e reflexões

1. Sobre autonomia e independência

“A conquista da independência começa com os primeiros passos da vida.”
“A independência não é estática. É uma conquista contínua.”

Reflexão:
Essas palavras revelam a energia interior da criança: sua autonomia não nasce pronta, mas se constrói passo a passo, momento a momento, no ritmo singular de cada ser. Na estética da presença, esse caminhar é celebrado como poesia — não apenas como um fim, mas como ritmo e música perene da infância.

2. A criança como quem busca o mundo

“A criança não tem um comportamento fixo, mas ela precisa apreender o ambiente, portanto, é necessário ter um cuidado especial com o ambiente que rodeia esse recém-nascido.”
“A criança não é uma vítima das impressões que estão ao seu redor e que a atingem, mas busca-as.”

Reflexão:
Aqui se expressa a criança como abertura ao mundo — uma presença sensível que busca, sente, acolhe. Isso nos convida a pensar o ambiente como cenário poético: um espaço preparado que não impõe, mas convoca, que observa, acomoda e reverencia a criança que o habita.

3. Sobre educação e liberdade

“É somente através da liberdade e das experiências no ambiente que o homem pode se desenvolver.”

Reflexão:
A liberdade — entendida como espaço de experiência sensorial, escolha e descoberta — é o solo fértil da presença. Libertar a criança é deixá-la existir de forma plena em corpo, alma e percepção — é, por si só, um gesto estético, um ato de testemunho da vida que faz.

4. O ambiente como presença envolvente

“O primeiro problema da educação é fornecer à criança um ambiente que permita que ela desenvolva as funções que a natureza lhe deu.”

Reflexão:
Montessori nos chama a cuidar do ambiente com a mesma reverência que se dedica ao gesto artístico. Cada elemento — móvel, utensílio, luz, textura — deve sustentar a presença da criança. Isso é estética da vez: a arte de arrumar o espaço para revelar quem a criança já é e abrir-se às suas curiosidades.

5. Atitude do educador

“A tarefa do professor é preparar motivações para atividades culturais, num ambiente previamente organizado, e depois se abster de interferir.”

Reflexão:
O adulto como cuidador silencioso. Ele cria, posiciona, oferece — e depois se suspende. Esse recolhimento é respeitoso, observador e poético, como uma luz que ilumina sem ofuscar, um eco que não invade mas acolhe a presença da criança e suas perguntas.

6. Sobre sensibilidades e potencial humano

“A inteligência da criança observa amando e não com indiferença — isso é o que faz ver o invisível.”

Reflexão:
A criança vê e sente de uma forma sublime: “com amor, e não com indiferença”. Essa frase ecoa profundamente em quem busca na presença estética um modo de olhar — um olhar que vê o invisível, que escuta o silêncio, que detecta a presença onde outros só percebem o óbvio.

7. Sobre liberdade e dignidade

“Nunca ajude uma criança numa tarefa em que ela se sente capaz de fazer.”

Reflexão:
É uma frase curta, mas carregada de dignidade: cada gesto espontâneo da criança merece ser respeitado, acolhido, mas não ocupado. A liberdade de tentar, errar e conquistar é também a liberdade de existir como artista de si mesma, no espaço e no tempo que lhe cabe.

Vale trazer outras frases breves que ressoam de maneira permanente em nós que educamos e nos encantamos e reverenciamos as pessoas que nos antecederam e fizeram tantas coisas boas, como Maria Montessori…

“Ajude-me a crescer, mas deixe-me ser eu mesmo.”

“Se houver ajuda e salvação para a humanidade, só poderá ser através das crianças. Porque as crianças são as criadoras da humanidade.”

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Alberto Chicamisse
Alberto Chicamisse
29 dias atrás

Este link me ajudou muito para compreender o pensamento de Montessori sobre a criação