A leitura é muito mais do que decifrar letras. É uma das linguagens expressivas mais poderosas que existem, capaz de nos transportar para outros mundos, apresentar novas perspectivas e, fundamentalmente, nos conectar com a nossa própria humanidade. Em um mundo cada vez mais visual e fragmentado, a literatura se mantém como um farol, oferecendo um espaço de profundidade e reflexão. No entanto, para que essa linguagem se desenvolva, precisamos ir além da mera obrigação e adentrar o universo da apreciação de livros, reconhecendo os direitos do leitor.
A leitura diária e comentários não devem ser vistos como tarefas, mas como rituais. Transformar a leitura em um hábito cotidiano é como regar uma planta: aos poucos, a familiaridade com as palavras e as narrativas cresce e se fortalece. Em vez de exigir silêncio e concentração absolutos, podemos criar um ambiente onde as ideias fluam. O ato de compartilhar impressões, fazer perguntas e debater personagens e enredos enriquece a experiência. O livro se torna o ponto de partida para um diálogo, uma ponte para a conexão com o outro. Não se trata apenas de entender a história, mas de sentir e reagir a ela, construindo nossa própria interpretação.
A competência literária não se resume a conhecer a biografia de autores ou a identificar gêneros. Ela reside na capacidade de se envolver com a obra, de compreender as entrelinhas, as metáforas e as emoções que a escrita transmite. Essa competência se constrói com a prática, com o acesso a livros de qualidade e diversificados. É essencial que as escolas, bibliotecas e as próprias famílias ofereçam um universo de possibilidades literárias, desde contos de fadas clássicos até quadrinhos literários contemporâneas, de poesias singelas a ensaios complexos. O contato com diferentes vozes e estilos expande o repertório e afina o olhar do leitor.
O Espaço Vivo: Mais que Estantes, um Ateliê de Palavras
Para a familiarização com a literatura, o ambiente em que a leitura acontece é tão importante quanto os próprios livros. Um espaço vivo com livros não é apenas uma biblioteca silenciosa, mas um ateliê de palavras onde a curiosidade e o toque são bem-vindos. Isso significa prateleiras baixas e acessíveis, almofadas no chão, luz natural e, acima de tudo, a liberdade para manusear, folhear e se perder entre as páginas. Nesses espaços, os livros se tornam objetos de afeto, companheiros para a exploração e o aprendizado. A criança não é apenas convidada a ler, mas a vivenciar a leitura.
A imaginação das crianças é a maior aliada nesse processo. A literatura é o combustível perfeito para que ela decole, libertando-a das amarras do concreto. Enquanto as telas frequentemente oferecem imagens prontas, a leitura exige um trabalho ativo da mente. O leitor precisa construir cenários, dar forma aos personagens, visualizar o que é apenas sugerido. É nesse esforço criativo que a imaginação se fortalece, transformando o ato de ler em um exercício de criação.
Superando a Tela: A Leitura Como Antídoto
Em um mundo dominado por dispositivos e a velocidade da informação digital, a leitura de livros físicos oferece um contraponto essencial, ajudando na superação do acesso ao mundo através de telas. A tela nos entrega o mundo, o livro nos convida a construí-lo. O deslizar do dedo na tela é rápido e superficial; o virar de uma página é um ato deliberado, que convida à pausa e à reflexão.
A leitura profunda, sustentada pelo contato com o papel, desenvolve a atenção, a concentração e a paciência – habilidades cruciais que as telas, com sua lógica de gratificação instantânea, muitas vezes desestimulam. Oferecer livros é uma forma de garantir que as crianças tenham acesso a um tipo de interação com o mundo que é mais lenta, mais pessoal e, em última análise, mais significativa. É um direito que precisa ser garantido para que a competência literária floresça e a apreciação de livros se torne um valor duradouro.
Os Direitos Inegociáveis do Leitor
O escritor francês Daniel Pennac, em seu livro “Como um Romance”, nos lembra que a apreciação de livros só é possível quando libertamos a leitura das obrigações e regras rígidas. Ele cunhou os “Direitos Imprescritíveis do Leitor”, uma espécie de manifesto pela liberdade e pelo prazer de ler. Esses direitos são a base para qualquer prática que valorize a leitura genuína:
- O direito de não ler: Sim, o primeiro direito é a liberdade. A leitura forçada pode gerar aversão e associar o ato a um castigo. O desejo de ler deve ser alimentado, não imposto.
- O direito de pular páginas: A leitura não é uma corrida. É um percurso pessoal. O leitor tem o direito de avançar ou recuar, de se deter em um parágrafo ou pular um capítulo que não lhe agrada, sem culpa.
- O direito de reler: A releitura de um livro pode ser tão ou mais prazerosa que a primeira vez. Retornar a uma obra permite notar detalhes, perceber novas camadas e reviver a experiência.
- O direito de ler qualquer coisa: Não existe “literatura inferior”. Do gibi ao clássico, tudo pode ser um ponto de partida para a competência literária. O que importa é o engajamento com a história.
O reconhecimento desses direitos é fundamental para a estética da presença na leitura. Quando o leitor tem autonomia, ele se sente no controle de sua experiência, presente no momento e na narrativa. A leitura deixa de ser uma tarefa e se torna uma escolha, uma forma de expressão e de autoconhecimento.
Portanto, para cultivar a leitura como uma linguagem expressiva, precisamos criar espaços onde os livros sejam amigos, não deveres. Onde o acesso seja livre, as conversas, bem-vindas, e o prazer de ler, um direito garantido. Assim, a literatura não será apenas algo a ser consumido, mas algo a ser vivido.
A Arte da Mediação: Cultivando o Prazer de Ler na Educação Infantil
A apreciação de livros na educação infantil não surge por acaso; ela é o resultado de uma mediação de leitura cuidadosa e intencional. Mais do que apenas contar histórias, o mediador é o elo afetivo entre a criança e o mundo da literatura. A mediação se torna, então, uma arte de tecer conexões, despertar a curiosidade e construir um relacionamento de carinho e prazer com os livros.
O Mediador como Parceiro de Descobertas
Na educação infantil, o professor ou o mediador não é apenas o narrador, mas um companheiro de viagem que explora a história junto com as crianças. A mediação eficaz se afasta da leitura mecânica e convida à interação. O livro vira um objeto de exploração. O mediador pode:
- Criar suspense: Fazer pausas dramáticas para que a imaginação das crianças preencha as lacunas da história.
- Explorar as ilustrações: Antes de ler o texto, perguntar o que as crianças veem nas imagens, o que elas acham que vai acontecer.
- Usar a voz e o corpo: Brincar com diferentes vozes para os personagens e usar gestos que tornem a narrativa mais viva.
- Convidar à conversa: Fazer perguntas abertas que estimulem o pensamento crítico e a expressão de sentimentos. “O que você faria no lugar do personagem?”, “O que essa história te fez sentir?”.
Essa mediação ativa transforma a leitura em um momento de troca, onde a criança não é um ouvinte passivo, mas um participante. Ela aprende que suas opiniões e sentimentos sobre o livro são válidos, e que a leitura é um ato de compartilhamento.
A mediação de leitura na educação infantil é, em sua essência, um convite para o prazer. Ao nutrir a curiosidade, validar a imaginação e celebrar a expressão das crianças, o mediador garante que o livro se torne um amigo, um porto seguro e uma porta de entrada para um universo de descobertas que durarão a vida inteira.
O empréstimo de livros na escola é uma estratégia fundamental para a familiarização com a literatura, expandindo a apreciação de livros para além da sala de aula. É uma forma de dizer à criança que a leitura não é uma atividade restrita, mas um direito e um prazer que pode ser levado para casa e compartilhado com a família.
Estratégias para o Empréstimo de Livros na Educação Infantil
O empréstimo deve ser um ritual, um momento de celebração. É preciso ir além da simples retirada e devolução.
- A Maleta Viajante: A criança escolhe um livro e o coloca em uma maleta ou sacola especial. A maleta, por si só, já transforma o empréstimo em algo mágico e importante. Dentro da maleta, pode ir também um pequeno “diário de viagem” (um caderno simples) para que a criança ou a família registrem como foi a leitura em casa (com desenhos, fotos ou poucas palavras). Isso incentiva a família a participar e a escola a entender o que as crianças mais gostam de ler.
- O Livro como Tesouro: O professor pode apresentar os livros como se fossem tesouros. “Quem vai levar o tesouro para casa hoje?” ou “Qual aventura você vai levar para a sua família?”. Isso cria um senso de valor e responsabilidade.
- A Roda de Histórias: Antes de cada empréstimo, a turma pode se reunir para que o professor conte a resenha de cada história ou de um dos livros disponíveis. Isso desperta o interesse e ajuda a criança a escolher, pois ela já se familiarizou com a narrativa.
- Empréstimo por Rodízio: Para evitar disputa por um único livro, a escola pode organizar o empréstimo por rodízio, onde cada criança leva um livro diferente a cada semana, garantindo que todos tenham contato com uma variedade de obras.
Estratégias para Adquirir Livros de Qualidade
A qualidade do acervo é essencial para nutrir a competência literária. A biblioteca circulante deve ser um espaço de descobertas, com livros que dialogam com a imaginação das crianças e com suas vivências.
- Pesquisa e Curadoria: Não basta ter muitos livros, é preciso ter os livros certos. Pesquise por editoras especializadas em literatura infantil (como a Moderna, FTD, Companhia das Letrinhas, Brinque-Book, Pulo do Gato, entre outras). Invista em livros de diferentes gêneros (poesia, contos, livros de imagem, livros interativos) e de autores e ilustradores variados.
- Campanhas de Arrecadação: Promova campanhas de doação de livros com a comunidade escolar e com a família. Para garantir a qualidade, é importante ter critérios claros de doação (por exemplo, “apenas livros em bom estado e adequados para a faixa etária”).
- Feiras de Livros: Muitas editoras e livrarias realizam feiras com descontos especiais para escolas. Essa é uma excelente oportunidade para adquirir um grande volume de livros com um bom custo-benefício.
- Recursos Públicos: Verifique se a escola pode se cadastrar em programas governamentais de distribuição de livros para escolas públicas e privadas, ou se há projetos de bibliotecas comunitárias que possam apoiar a iniciativa.
- Participação das Famílias: Convide as famílias a participarem da escolha dos livros. Crie uma lista de desejos ou promova um “dia de compras” com os pais para selecionar novos títulos. A participação fortalece o vínculo entre escola e família.
Ao implementar um sistema de empréstimo e uma curadoria cuidadosa, a escola não apenas amplia o acesso a livros, mas também fortalece a cultura da leitura, transformando-a em uma prática cotidiana e prazerosa.
A jornada do leitor na educação infantil não se resume a uma única prática, mas a um conjunto de ações que transformam a leitura em uma experiência viva e significativa. A mediação cuidadosa, o acesso a livros de qualidade e a criação de rituais de empréstimo são pilares que sustentam a apreciação de livros e nutrem a competência literária desde a primeira infância.
Afinal, ao garantir o direito da criança de se familiarizar com a literatura, a escola não está apenas formando futuros leitores; está construindo um caminho para que elas se tornem indivíduos mais sensíveis, criativos e capazes de sentir e transformar o mundo com as palavras. A estética da presença na leitura se manifesta nesse compromisso de tornar o livro um companheiro inseparável na aventura de crescer.